Por Gabriella Vicente
Escritora, sanitarista e doutoranda em Saúde Pública pelo Instituto de Medicina Social/UERJ.
O livro infantil é um potente veículo de comunicação, ainda que compita com recursos sonoros e visuais mais apelativos, o livro contém o elemento da contação de história, uma janela de oportunidades para o ensino da indagação. E indagar, meus caros, em tempos de formatação padronizada do pensamento, é um poder.
Não quero aqui romantizar o não acesso a recursos tecnológicos que, de fato, facilitaria a vida de muitos que não acessam o básico, mas talvez propor uma visão alternativa ao conceito de tecnologia, que normalmente se restringe à maquinaria, automação e software. Valho-me do conceito de tecnologia social trazida pelo Caderno de Debate – Tecnologia Social no Brasil, como “conjunto de técnicas e metodologias transformadoras, desenvolvidas e/ou aplicadas na interação com a população e apropriadas por ela, que representam soluções para inclusão social e melhoria das condições de vida” (ITS, 2004:26) e como esse conceito se aplica a um país desigual com infâncias interrompidas pela vulnerabilidade social.
Cecília Meireles, já em 1984, traz a visão atemporal de que o livro infantil, se bem dirigido à criança, transmite os pontos de vista da intenção ou invenção que o adulto autor considera mais úteis à formação de seus leitores, de modo que a considerar a literatura não como um passatempo, mas uma nutrição (MEIRELES, 1984:29;32). Dessa forma, a literatura como ferramenta de tecnologia social tem como base a disseminação de soluções para problemas voltados às demandas das populações em situação de vulnerabilidade social.
A pobreza, violências e outras temáticas difíceis, se abordadas pela via do universo infantil, tem potência para destravar o debate que começa nas mais tenras idades. As perguntas da vulnerabilidade podem desafiar os adultos formuladores de políticas públicas protetoras da infância a questionamentos que desnaturalizam as condições desumanas de vida. A começar pelas crianças. A consciência da condição que os assola é cruel, mas potente, e o livro é veículo para a descoberta de realidades que elas podem tocar.
Termino essa reflexão com uma partilha da experiência do Miguel, uma criança com autismo após leitura, assessorada por sua mãe, do livro “A viagem de Dorinha”: “Já li pra Miguel. Ele ficou me abraçando e beijando a cada vez que eu falava sobre o afeto da Dorinha. O essencial da história ele captou”. Miguel entendeu uma mensagem socialmente determinada como ininteligível dada sua situação vulnerável, mas surpreendentemente a literatura infantil comunicou e encorajou afeto no menino Miguel. Feliz dia do livro infantil, tecnologia social potente para transformação de infâncias.
Dorinha é uma embaixadora dos afetos através de suas páginas coloridas e cheia de resistência.