Sempre ouvi falar da Bolsa Verde, mas nunca tive a oportunidade de conhecer de fato. Na verdade, eu sempre me senti incapaz de trabalhar com pessoas vulneráveis, pois sofro muito suas situações, principalmente porque muitas vezes não sabia o que fazer além de orar.
Um dia, a Clenir* me desafiou a fazer o curso aqui em Moçambique. Confesso que não fiquei animada. Conversei com ela sobre como eu me sentia incapaz para este trabalho. Até que ela me convenceu com o argumento de que eu poderia “ser ponte” para trazer o Projeto Calçada pra cá, sendo multiplicadora. Eu me senti mais responsável ainda e orei muito pra Deus trazer paz ao meu coração e usar a minha vida.
Foi um treinamento difícil em vários sentidos: financeiro, muito calor, problemas com o carro. A Clenir foi, uma guerreira para fazer tudo dar certo. Ela não me ensinou apenas como aconselhar crianças e adolescentes com a Bolsa Verde. Creio que ela nem imagina como Deus a usou para abençoar a minha vida!
Hoje, eu ainda me impressiono com a explicação do processo, como a “Palavra Viva” pode transformar a auto-imagem, a auto-estima, mesmo se a situação não for solucionada, há uma mudança significativa na vida de quem ouve as histórias da Bolsa Verde.
Uma das histórias que mais me marcou nesse tempo aconselhando foi a da Alice, uma adolescente de 15 anos que vive em um orfanato. Quando o pai adoeceu, a mãe foi embora de casa deixando os quatro filhos. A menor tinha 3 anos. Depois, com a morte de seu pai, os tios e vizinhos queriam ajuda a ela e seus irmãos, mas a mãe não deixava, mesmo não morando na casa. Diante disso, ela disse se sentir sozinha e abandonada.
Ela estava muito séria e parecia triste quando fomos conversar. Disse que se sentia como uma tartaruga que, quando está em perigo, tem o casco para se proteger. Um detalhe é que aqui na África, os olhos são a forma de se expressar. Parece que o rosto se congela, mas os olhos falam. Alice tinha os olhos tristes, pois disse várias vezes que se sentia abandonada pela mãe. Mas que mudança linda pode acontecer! Ao final da conversa ela disse que se sentia não como uma frágil tartaruga, mas como uma casa com alicerces bem feitos.
Hoje ela continua orando pela libertação da sua mãe, que trabalha com feitiçaria. Ela me disse que não se sente mais sozinha e que quer ser estilista de moda. Não mais tem olhos tristes, mas um olhar cheio de esperança e planos para o futuro.
Enquanto eu fazia meu treinamento, eu não entendia o motivo de aprender sobre tudo isso, pois não me identificava com os traumas da maioria. E eu nem imaginava que Deus estava me preparando não só para trabalhar com a Bolsa Verde, mas também para enfrentar um trauma na minha própria vida.
Alguns meses depois eu e minha família passamos pelo ciclone. Pronto, agora eu tinha um trauma, e dos grandes! Depois que conseguimos sair da cidade e nos comunicar, a Clenir novamente me ajudou muito, conversando comigo, me ajudando a organizar meus pensamentos e sentimentos. Ríamos muito também. Como foi importante entender o processo da cura de um trauma!
Sei que o treinamento era para eu ficar apta a ajudar crianças e adolescentes como a Alice, mas Deus fez além: usou o Projeto Calçada para me abençoar! Assim como ela, eu também experimentei mudanças incríveis da minha vida.
Educadora Zuri, Moçambique.
*Clenir Xavier é a diretora internacional do projeto Calçada
Escrito pela educadora Mayre com colaboração de Beatriz Bastos
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